A propósito d’ Uma História de Violência

March 31, 2006

Do meu amigo João Vasco, um dos responsáveis pelo Cineclube de Terror de Lisboa, aqui fica um texto sobre a última obra de Cronenberg.

A propósito d’UMA HISTÓRIA DE VIOLÊNCIA
Um dos maiores teóricos da arte cinematográfica, Jean Epstein, elevava a importância do invento ao nível de descobertas científicas como o microscópio e telescópio. Permitia observar a realidade com a minuciosidade do primeiro e a distanciação do segundo, obrigando o homem a rever a sua representação do mundo. Ver o que está escondido nas sombras à luz do cinema é a maior virtude do meio. Recentemente têm surgido filmes que pretendem afirmar esta verdade em função da situação geo-política mundial. Ao optimismo dos anos 80 e 90, vive-se um clima de turbulência semelhante ao dos anos 60, devido a fenómenos como a globalização ou a impossibilidade de erradicação dos conflitos armados. Isto fez com que os cineastas contemporâneos sentissem uma certa urgência em olhar pela câmara de cinema para o que está na origem deste neo-pessimismo. Passada a desilusão que a reeleição de George W. Bush provocou, chegou a altura de se tentar compreender a História que estamos destinados a viver. Nessa “nova vaga” de filmes políticos destaco Munich de Steven Spielberg, Caché de Michael Haneke e este History of Violence de David Cronenberg e proponho uma análise do último em relação com os primeiros, esquecendo os meios de produção e concentrando-me nos pontos de vista apresentados. Mas antes, recuemos umas décadas até à era do film noir. No seio deste subgénero nasceu outro que ainda perdura com bastante popularidade, o filme de Gansgters. Aquilo que define a sua unicidade é a forma como o factor familiar humaniza os criminosos que ameaçam a consolidação do ideal social, permitindo-nos vislumbrar nas personagens destes filmes o que está por detrás da violência brutal que caracteriza os seus actos. O ser humano por detrás do monstro revela-se e permite uma identificação do espectador com o gangster que, estou em crer, perdurará para sempre. Este subgénero, tal como o cinema de terror moderno, vai de encontro à ideia de Epstein do cinema como máquina de alteração paradigmática, que dá visibilidade ao relativismo que a modernidade supõe: todas as coisas são dependentes umas das outras. Aqui observamos à distância pela câmara telescópica o personagem em interacção com o espaço dramático, mas pela câmara microscópica vemos as características humanas que propenciam essa mesma interacção. Mais do que puramente técnico, o cinema assume-se como um instrumento de alcance filosófico. É aqui que chegamos aos três filmes. William Burroughs (uma das maiores referências de Cronenberg), via a família como o principal obstáculo ao progresso humano, fortalecendo a desumanização operada pelo progresso tecnológico. As nações, as sociedades, as empresas são meras extensões da família nuclear em termos de organização. Spielberg no seu filme reduz o conflito israelo-árabe a uma guerra de famílias e filma-a como se se tratasse de um filme de gangsters. E de facto, estamos perante uma guerra de tribos que se espalhou como vírus pelo globo conduzindo à escalada do terrorismo que se verificou após o 11 de Setembro. É um quadro geral sustentado pelo conceito de família ameaçada. Caché e History of Violence propõem outra leitura. A sociedade é filmada à escala da família no sentido de que, ao observarmos as acções individuais possamos ter uma noção das suas repercurssões ao nível do colectivo. Se a organização social é pensada tendo como modelo a família, então é nesta que poderemos encontrar as respostas para a compreensão dos problemas. Estes filmes centram-se em famílias diferentes mas tocam-se naquilo que me parece torná-los fundamentais no panorama do filme político pós-reeleição de Bush: a mentira enquanto sustento da família e da sociedade contemporâneas. Ambos realizadores, sendo “estrangeiros” à realidade que abordam, conseguem uma visão distanciada da questão, nunca se comprometendo demasiado, propondo apenas reflexões individuais. Os planos abertos e fixos salientam essa passividade do olhar. Haneke vai mais longe do que Cronenberg, apostando num registo perto do reality show. O canadiano ensaia a revisitação mitológica do american way of life dos anos 50: a pacata cidade onde todos se conhecem, o liceu, o desporto, a casa com jardim, o sexo enquanto brincadeira de casais, uma dicotomia campo/cidade acentuada pela intromissão do passado de Tom Stall (Viggo Mortensen), provindo de um ambiente urbano.Existem dois personagens com um passado comprometedor, que sugere uma culpa com a qual não conseguem viver apesar da vida que construíram. Mas, quando este volta para os desmascarar, apercebemo-nos de que a culpa é um sentimento partilhado por todos, despertando a verdadeira natureza do ser humano, algo com que preferimos não ter de nos confrontar, o chamado dark side muito usado para definir a popularidade do cinema de terror. Mas o lado obscuro não é exclusivo da figura paternal, em ambos os filmes o outro vértice do equilíbrio da família nuclear também fraqueja, e as melhores sequências destes filmes são curiosamente aquelas em que as mulheres confessam instintivamente o seu segredo (em Caché, é quando Juliette Binoche é confrontada pelo filho relativamente à sua infidelidade e em History of Violence na fabulosa sequência de sexo nas escadas entre Tom e a sua esposa interpretada pela actriz Maria Bello). Temos presente nestes soberbos filmes a assumpção da mentira como estrutura de toda a nossa existência social, a sua raison d’être. Se Haneke foca a família nuclear moderna para nos dar uma visão do papel da Europa no conflito iraquiano como algo de genético (o passado colonialista), Cronenberg celebra essa mesma herança genética como algo inevitável e profundamente humano (o próprio numa entrevista define biologia como destino), patente na fabulosa cena em que o filho de Tom espanca brutalmente e sem que nada o previsse, os rapazes que o atormentam na escola, ou seja, assume a sua herança genética, o seu destino.No entanto, não podemos definir estes filmes como pessimistas, ambos terminam de uma forma aberta pressupondo uma hipótese de regeneração, não no sentido de uma tomada de consciência mas de um prosseguir do nosso destino trágico pelas gerações vindouras.  Em Cronenberg, depois de Tom apagar de vez o seu passado genético (literalmente), procura a reinserção familiar à mesa (vista como o centro da vitalidade familiar). Perante o constrangimento da esposa e do filho mais velho, é o mais novo que convida o pai a reassumir o seu papel na farsa. Com esta última sequência, o realizador de The Brood (outro filme essencial sobre este tema), coloca a seguinte questão: Estaremos dispostos a pagar qualquer preço pela verdade, mesmo que isso ínclua a desagregação da sociedade moderna? Ou será mais confortável não termos de lidar com a nossa verdadeira natureza, com a violência inerente a essa natureza, e escondermo-nos por detrás de concepções objectivas de bem e mal?Para discutir melhor este último ponto, gostava de referir outro filme que passou despercebido pelo circuito comercial o ano passado (o que até nem foi tão mau quanto isso, tendo em conta que passou directamente para dvd nos EUA), Control de Tim Hunter, que relata a história de um sociopata condenado à morte (Ray Liotta) a quem é dada uma segunda hipótese. Para isso, deve concordar em servir de cobaia para uma nova droga que visa a erradicação de todas as tendências anti-sociais de um sujeito e permitir a sua reintegração na sociedade. Liotta aos poucos desenvolve sentimentos de remorso relativamente a um episódio passado, em que disparou sobre um traunseunte que ficou em estado vegetativo. Este é o único caso para o qual Liotta não tem a justificação de luta pela sobrevivência. Convencido de que a droga está a fazer efeito, descobre o prazer de viver numa existência até então marcada pela violência e pela dor. Mas quando o seu passado volta para acertar contas (tal como acontece a Tom Stall), o tratamento é interrompido e Liotta sente que sem a droga voltará a sentir o ódio que pautava as suas acções. O climax do filme surge quando o médico responsável pela experiência (Willem Dafoe) revela que o medicamento que lhe tem sido administrado não é mais do que um placebo, e que toda a transformação operada de inimigo público nº1 a cidadão exemplar foi da sua inteira responsabilidade. Este filme sugere a velha máxima veiculada pelo film noir, de que a linha que separa o bem do mal é muito ténue, que todos nós nascemos com o mesmo potencial para a violência, que são as vicissitudes da vida que determinam a nossa adaptação à sociedade que nos viu nascer. O bem e o mal estão presentes em igual medida no nosso destino, mas para que possamos viver em comunidade teremos que o recalcar, mas nunca o eliminaremos completamente. Isto talvez ajude a explicar o fascínio irracional que a violência exerce sobre nós e também aquilo que nos faz consumir tanta violência sem que esta nos transforme no personagem de Malcolm McDowell depois do seu “tratamento” em A Clockwork Orange.Muito se tem dito acerca de se tratar de um Cronenberg muito comercial, o que não me parece fazer muito sentido. Não há muitos filmes comerciais que comecem da forma que este começa. Através do travelling inicial temos a sugestão de um massacre perpetrado numa cafetaria por dois indiferentes assassinos (a lembrar as personagens de Steve Buscemi e Peter Stormare em Fargo). History of Violence marca uma viragem na obra de Cronenberg já evidenciada em Spider, depois da exploração do corpo em interacção com as tecnologias e com os seus próprios limites, o autor canadiano debruça-se sobre o cerne das mutações, o centro nevrálgico da nossa condição: o cérebro humano. Projectos comerciais existem na obra do cineasta, como o provam Dead Zone ou mesmo The Fly, o que não os impede de serem duas grandes obras, superiores a outras mais experimentais como o já mencionado Spider ou Naked Lunch. Mais, a forma como Cronenberg reinventa o filme de gansgters faz deste filme a sua melhor obra desde Crash. Indispensável.


4.ª Festa do Jazz do São Luiz

March 21, 2006

Está quase aí a 4ª Festa do Jazz. Este evento, que se afirma cada vez mais como um grande acontecimento do jazz nacional, tem este ano uma programação reforçada. Para além das tradicionais actuações das escolas de jazz, há uma série de concertos que mostram o que de melhor acontece no jazz português.
Aqui fica o programa completo:

31 de Março (6.ª Feira)
Bernardo Sassetti Trio2 “Ascent” – 21h30, Sala Principal 
Ensemble Festa do Jazz – 23h00, Sala Principal 
Quinteto Escola Hot Clube – 24h, Jardim de Inverno

1 de Abril (Sábado)
Paula Sousa / Demian Cabaud – 14h00 / 17h00 / 20h00, Café dos Teatros 
João Falcato Quarteto – 17h00, Estúdio Mário Viegas 
Wishful Thinking Quintet – 18h00, Estúdio Mário Viegas 
Joana Rios – 19h00, Sala Principal 
Quinteto de Mário Santos “Bloco de Notas” – 20h00, Estúdio Mario Viegas 
TGB – 21h30, Sala Principal 
Sexteto Mário Franco & David Binney – 23h00, Sala Principal 
BabyJazz Septet – 24h00, Jardim de Inverno

2 de Abril (Domingo)
Diogo Vida / Rodrigo Monteiro – 14h00 / 17h00 / 20h00, Café dos Teatros 
LA Jumping P – 17h00, Estúdio Mário Viegas 
Quarteto André Matos – 18h00, Estúdio Mário Viegas 
Paula Oliveira e Bernardo Moreira ”Lisboa que Adormece” – 19h00, Sala Principal 
João Paulo – 20h00, Estúdio Mário Viegas 
Laurent Filipe “A Luz” – 21h30, Sala Principal 
Estardalhaço Brass Band – 23h00, Sala Principal 
SPJ Group & João Guimarães “Tributo a Charlie Parker” – 24h00, Jardim de Inverno

O preço dos bilhetes é de 15 € para um dia, 25 € para dois dias e 30 € para a totalidade dos espectáculos.


E não se pode calá-lo?

March 20, 2006

José Manuel Fernandes continua como sempre esteve. Medíocre.
Ao contrário do que escreveu: O PCP acha que não. Na sua opinião Cavaco rompeu “com o critério que garantia a representação dos principais partidos”, o que “revela a sua intolerância”. Mentira: revela a intolerância do PCP, que antes não se mostrava incomodado com a ausência de qualquer representante do CDS mas entende que a sua própria ausência já viola um qualquer direito fundamental de que se julga ungido., o CDS teve um membro nomeado pelo anterior Presidente da República. Acontece que o líder da banda PP na altura, Paulo Portas, indicou Basílio Horta, facto que não agradou a Jorge Sampaio. Portanto, o PP sempre foi convidado a assumir um lugar no Conselho de Estado, ao contrário do que acontece agora, quando cavaco convida Anacoreta Correia deixando de fora representantes do PCP e do BE.
É esta a visão de JMF, medíocre como habitualmente.


Três anos depois…

March 20, 2006

do início de uma guerra sanguinária e cruel, o Expresso informa que Durão Barroso reconheceu o erro.
Três anos depois de ter apoiado a guerra no Iraque, o antigo primeiro-ministro português e actual presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, declarou ontem ter agido com base em informações «que não foram confirmadas».
Entretanto, morreram milhares e o Iraque está à beira de uma guerra civil. E hoje Durão assume que errou. Assim, como se nada fosse. Como se uma guerra fosse um acto menor e sem consequências.


A próxima Sábado promete!

March 16, 2006

Ao passar hoje pela banca de jornais, observei com atenção a capa da revista Sábado desta semana. E fiquei verdadeiramente irritado pela entrevista a um dos homens do momento, Paulo Teixeira Pinto.
Pois nesta entrevista, a avaliar pelos títulos, ficamos a saber que o homem “vai à missa todos os dias e faz retiros espirituais com o opus dei”, “fez a opa ao bpi com apenas 15 pessoas”, “acorda às seis e meia da manhã e vai levar e buscar a mulher ao emprego” e, como não podia deixar de ser, uma nota cultural onde se lê que “leu “O Principezinho” na véspera do negócio”.
E enquanto lia isto, lembrei-me de uma entrevista que o mesmo senhor deu ontem a um canal de televisão onde afirmou que sim, que se a opa sobre o BPI avançasse, 3000 pessoas seriam dispensadas (termo simpático para o despedimento). Também me lembrei que o banco que este senhor dirige não permitia a contratação de mulheres para os seus quadros, ao contrário da mulher dele que teve a sorte do conseguir arranjar um emprego e tem a sorte de ter um marido que a vai levar e buscar ao trabalho. Ah, e também me lembrei que os lucros do banco que este senhor dirige subiram vertiginosamente nos últimos anos, embora continuem a pagar (tal como os outros bancos), quando pagam, uma taxa de IRC miserável. E ainda me lembrei que o ministro das finanças ontem exultava com esta animação bolsista, não na bolsa de cada um de nós, mas ali na bolsa de valores por ser um sinal encorajador para a política (voragem) de privatizações. É com estes novos “Principezinhos” que a alta finança vai reinando e brincando.
Eu limitei-me a entrar no metro irritado com tudo isto…


Os amiguinhos estão lá todos…

March 16, 2006

Não foi preciso esperar muito tempo para cavaco começar a mostrar serviço e a pagar favores.
Foi ontem divulgada a lista de pessoas nomeadas pelo actual inquilino de Belém para compor o Conselho de Estado. E ficámos, novamente, a saber que os favores se pagam e que os órgãos de aconselhamento institucional são, também eles e para além das administrações de empresas do estado, coutadas do senhor que manda. O que eu gostava de saber é porque é que Dias Loureiro também lá anda? E Ferreira Leite ou Anacoreta Correia? Até porque, para estes senhores entrarem, saíram representantes de outros partidos que, fruto de resultados de eleições, até têm uma representação parlamentar superior à da Banda do PP. Como se já não bastasse o ultra-neo-liberal João Carlos Espada, adepto dos “clubs” britânicos e de alianças de sangue entre a Europa e os EUA para aconselhar o cavaco, só faltava a nomeação destas figuras sinistras e nocivas.


Eu também não aplaudia!

March 10, 2006

Esta questão do não aplauso e do não cumprimento levanta algumas questões que reflectem a mediocridade mental que por aí grassa. Enquanto as pessoas não perceberem que a coerência política se faz destas coisas, continuarão a aparecer hordas de bárbaros que aprenderam a cartilha do bom comportamento acima de tudo e de todos. Em política é nos locais próprios que se manifesta a discordância e o descontentamento e não é com um aplauso, só porque a situação o sugere, que se apaga todo o mal que cavaco nos fez e se prepara para repetir. A tacanhez mental dos que afirmam que foi uma falta de respeito e uma demonstração de mau perder só reflecte a palidez e o respeitinho serôdio desses senhores. Por outro lado, preparemo-nos para cinco anos de presenças assíduas dos acólitos de Cavaco que depois de ontem vão começar a sair das tocas. “Ai Portugal, Portugal de que é que tu estás à espera?…”


Ali Farka Touré

March 8, 2006

 

Ali Farka Touré morreu hoje em sua casa, aos 67 anos, vítima de doença prolongada. Deixa-nos um trabalho musical assente na linguagem do blues, em diálogo com as tradições musicais do seu país, o Mali, mas também um passado de luta activa pela paz. Ocupava actualmente a posição de Presidente da Câmara de Niafunke (sua terra natal) e afirmava que o mais importante era apostar na construção de novas escolas. Só desta forma seria possível desenvolver o país. Em entrevista a Ana Sousa Dias, no programa Por Outro Lado, em 2005, reafirmava a vontade de contribuir para um Mali mais desenvolvido e preparado. Acho que conseguiu.


Imprensa Quadratim está na rua

February 7, 2006

Desde ontem que é possível acompanhar o trabalho da Sara sobre a Imprensa. O projecto é mais abrangente e passa pela execução de livros numa técnica que caiu em desuso. Para já, faltam algumas peças fundamentais, mas os primeiros livros não vão, de certeza, demorar.


2.ª sessão de música comentada por José Duarte

February 7, 2006

Saxofone

Decorreu ontem a segunda das três sessões que José Duarte “oferece” na SPA. O tema escolhido, pela abrangência temporal e artística, permitiu mais uma viagem pelos saltos evolutivos dessa música que viveu ao longo do século XX uma vertigem avassaladora. As paragens de ontem levaram-nos ao cool da west coast norte-americana com Chet Baker, ao funky de Jimmy Smith (Get my mojo working) e Cannonball Adderley (Mercy, mercy, mercy), e aos Jazz Messengers de Art Blakey. Para a próxima segunda-feira fica a discussão sobre o free-jazz e sobre os possíveis caminhos que a seguir virão.