Do meu amigo João Vasco, um dos responsáveis pelo Cineclube de Terror de Lisboa, aqui fica um texto sobre a última obra de Cronenberg.
A propósito d’UMA HISTÓRIA DE VIOLÊNCIA
Um dos maiores teóricos da arte cinematográfica, Jean Epstein, elevava a importância do invento ao nível de descobertas científicas como o microscópio e telescópio. Permitia observar a realidade com a minuciosidade do primeiro e a distanciação do segundo, obrigando o homem a rever a sua representação do mundo. Ver o que está escondido nas sombras à luz do cinema é a maior virtude do meio. Recentemente têm surgido filmes que pretendem afirmar esta verdade em função da situação geo-política mundial. Ao optimismo dos anos 80 e 90, vive-se um clima de turbulência semelhante ao dos anos 60, devido a fenómenos como a globalização ou a impossibilidade de erradicação dos conflitos armados. Isto fez com que os cineastas contemporâneos sentissem uma certa urgência em olhar pela câmara de cinema para o que está na origem deste neo-pessimismo. Passada a desilusão que a reeleição de George W. Bush provocou, chegou a altura de se tentar compreender a História que estamos destinados a viver. Nessa “nova vaga” de filmes políticos destaco Munich de Steven Spielberg, Caché de Michael Haneke e este History of Violence de David Cronenberg e proponho uma análise do último em relação com os primeiros, esquecendo os meios de produção e concentrando-me nos pontos de vista apresentados. Mas antes, recuemos umas décadas até à era do film noir. No seio deste subgénero nasceu outro que ainda perdura com bastante popularidade, o filme de Gansgters. Aquilo que define a sua unicidade é a forma como o factor familiar humaniza os criminosos que ameaçam a consolidação do ideal social, permitindo-nos vislumbrar nas personagens destes filmes o que está por detrás da violência brutal que caracteriza os seus actos. O ser humano por detrás do monstro revela-se e permite uma identificação do espectador com o gangster que, estou em crer, perdurará para sempre. Este subgénero, tal como o cinema de terror moderno, vai de encontro à ideia de Epstein do cinema como máquina de alteração paradigmática, que dá visibilidade ao relativismo que a modernidade supõe: todas as coisas são dependentes umas das outras. Aqui observamos à distância pela câmara telescópica o personagem em interacção com o espaço dramático, mas pela câmara microscópica vemos as características humanas que propenciam essa mesma interacção. Mais do que puramente técnico, o cinema assume-se como um instrumento de alcance filosófico. É aqui que chegamos aos três filmes. William Burroughs (uma das maiores referências de Cronenberg), via a família como o principal obstáculo ao progresso humano, fortalecendo a desumanização operada pelo progresso tecnológico. As nações, as sociedades, as empresas são meras extensões da família nuclear em termos de organização. Spielberg no seu filme reduz o conflito israelo-árabe a uma guerra de famílias e filma-a como se se tratasse de um filme de gangsters. E de facto, estamos perante uma guerra de tribos que se espalhou como vírus pelo globo conduzindo à escalada do terrorismo que se verificou após o 11 de Setembro. É um quadro geral sustentado pelo conceito de família ameaçada. Caché e History of Violence propõem outra leitura. A sociedade é filmada à escala da família no sentido de que, ao observarmos as acções individuais possamos ter uma noção das suas repercurssões ao nível do colectivo. Se a organização social é pensada tendo como modelo a família, então é nesta que poderemos encontrar as respostas para a compreensão dos problemas. Estes filmes centram-se em famílias diferentes mas tocam-se naquilo que me parece torná-los fundamentais no panorama do filme político pós-reeleição de Bush: a mentira enquanto sustento da família e da sociedade contemporâneas. Ambos realizadores, sendo “estrangeiros” à realidade que abordam, conseguem uma visão distanciada da questão, nunca se comprometendo demasiado, propondo apenas reflexões individuais. Os planos abertos e fixos salientam essa passividade do olhar. Haneke vai mais longe do que Cronenberg, apostando num registo perto do reality show. O canadiano ensaia a revisitação mitológica do american way of life dos anos 50: a pacata cidade onde todos se conhecem, o liceu, o desporto, a casa com jardim, o sexo enquanto brincadeira de casais, uma dicotomia campo/cidade acentuada pela intromissão do passado de Tom Stall (Viggo Mortensen), provindo de um ambiente urbano.Existem dois personagens com um passado comprometedor, que sugere uma culpa com a qual não conseguem viver apesar da vida que construíram. Mas, quando este volta para os desmascarar, apercebemo-nos de que a culpa é um sentimento partilhado por todos, despertando a verdadeira natureza do ser humano, algo com que preferimos não ter de nos confrontar, o chamado dark side muito usado para definir a popularidade do cinema de terror. Mas o lado obscuro não é exclusivo da figura paternal, em ambos os filmes o outro vértice do equilíbrio da família nuclear também fraqueja, e as melhores sequências destes filmes são curiosamente aquelas em que as mulheres confessam instintivamente o seu segredo (em Caché, é quando Juliette Binoche é confrontada pelo filho relativamente à sua infidelidade e em History of Violence na fabulosa sequência de sexo nas escadas entre Tom e a sua esposa interpretada pela actriz Maria Bello). Temos presente nestes soberbos filmes a assumpção da mentira como estrutura de toda a nossa existência social, a sua raison d’être. Se Haneke foca a família nuclear moderna para nos dar uma visão do papel da Europa no conflito iraquiano como algo de genético (o passado colonialista), Cronenberg celebra essa mesma herança genética como algo inevitável e profundamente humano (o próprio numa entrevista define biologia como destino), patente na fabulosa cena em que o filho de Tom espanca brutalmente e sem que nada o previsse, os rapazes que o atormentam na escola, ou seja, assume a sua herança genética, o seu destino.No entanto, não podemos definir estes filmes como pessimistas, ambos terminam de uma forma aberta pressupondo uma hipótese de regeneração, não no sentido de uma tomada de consciência mas de um prosseguir do nosso destino trágico pelas gerações vindouras. Em Cronenberg, depois de Tom apagar de vez o seu passado genético (literalmente), procura a reinserção familiar à mesa (vista como o centro da vitalidade familiar). Perante o constrangimento da esposa e do filho mais velho, é o mais novo que convida o pai a reassumir o seu papel na farsa. Com esta última sequência, o realizador de The Brood (outro filme essencial sobre este tema), coloca a seguinte questão: Estaremos dispostos a pagar qualquer preço pela verdade, mesmo que isso ínclua a desagregação da sociedade moderna? Ou será mais confortável não termos de lidar com a nossa verdadeira natureza, com a violência inerente a essa natureza, e escondermo-nos por detrás de concepções objectivas de bem e mal?Para discutir melhor este último ponto, gostava de referir outro filme que passou despercebido pelo circuito comercial o ano passado (o que até nem foi tão mau quanto isso, tendo em conta que passou directamente para dvd nos EUA), Control de Tim Hunter, que relata a história de um sociopata condenado à morte (Ray Liotta) a quem é dada uma segunda hipótese. Para isso, deve concordar em servir de cobaia para uma nova droga que visa a erradicação de todas as tendências anti-sociais de um sujeito e permitir a sua reintegração na sociedade. Liotta aos poucos desenvolve sentimentos de remorso relativamente a um episódio passado, em que disparou sobre um traunseunte que ficou em estado vegetativo. Este é o único caso para o qual Liotta não tem a justificação de luta pela sobrevivência. Convencido de que a droga está a fazer efeito, descobre o prazer de viver numa existência até então marcada pela violência e pela dor. Mas quando o seu passado volta para acertar contas (tal como acontece a Tom Stall), o tratamento é interrompido e Liotta sente que sem a droga voltará a sentir o ódio que pautava as suas acções. O climax do filme surge quando o médico responsável pela experiência (Willem Dafoe) revela que o medicamento que lhe tem sido administrado não é mais do que um placebo, e que toda a transformação operada de inimigo público nº1 a cidadão exemplar foi da sua inteira responsabilidade. Este filme sugere a velha máxima veiculada pelo film noir, de que a linha que separa o bem do mal é muito ténue, que todos nós nascemos com o mesmo potencial para a violência, que são as vicissitudes da vida que determinam a nossa adaptação à sociedade que nos viu nascer. O bem e o mal estão presentes em igual medida no nosso destino, mas para que possamos viver em comunidade teremos que o recalcar, mas nunca o eliminaremos completamente. Isto talvez ajude a explicar o fascínio irracional que a violência exerce sobre nós e também aquilo que nos faz consumir tanta violência sem que esta nos transforme no personagem de Malcolm McDowell depois do seu “tratamento” em A Clockwork Orange.Muito se tem dito acerca de se tratar de um Cronenberg muito comercial, o que não me parece fazer muito sentido. Não há muitos filmes comerciais que comecem da forma que este começa. Através do travelling inicial temos a sugestão de um massacre perpetrado numa cafetaria por dois indiferentes assassinos (a lembrar as personagens de Steve Buscemi e Peter Stormare em Fargo). History of Violence marca uma viragem na obra de Cronenberg já evidenciada em Spider, depois da exploração do corpo em interacção com as tecnologias e com os seus próprios limites, o autor canadiano debruça-se sobre o cerne das mutações, o centro nevrálgico da nossa condição: o cérebro humano. Projectos comerciais existem na obra do cineasta, como o provam Dead Zone ou mesmo The Fly, o que não os impede de serem duas grandes obras, superiores a outras mais experimentais como o já mencionado Spider ou Naked Lunch. Mais, a forma como Cronenberg reinventa o filme de gansgters faz deste filme a sua melhor obra desde Crash. Indispensável.